Tuesday, August 20, 2019

ENTREVISTA: “Cinema é um lugar de gente valente”, diz Marcelo Lopes, do Instituto Mandacaru

"O que o Nordeste produz tem se destacado pela potência
criativa de maneira muito representativa nos últimos anos"

Fonte: Blog do Fábio Sena

Entre os dias 1 e 6 de setembro de 2019 Vitória da Conquista se traveste de capital baiana da sétima arte. Neste período, acontece a 𝗠𝗼𝘀𝘁𝗿𝗮 𝗖𝗶𝗻𝗲𝗺𝗮 𝗖𝗼𝗻𝗾𝘂𝗶𝘀𝘁𝗮 – 𝗨𝗺 𝗼𝗹𝗵𝗮𝗿 𝗽𝗮𝗿𝗮 𝗼 𝗻𝗼𝘃𝗼 𝗰𝗶𝗻𝗲𝗺𝗮, evento que integra o calendário cultural brasileiro e que vem, ao longo dos anos, se constituindo num dos mais privilegiados ambientes de exibição e discussão sobre o cinema brasileiro, especialmente acerca da produção nordestina, sempre enriquecendo o cenário, apesar de todas as dificuldades.


A Mostra alcança sua décima quarta edição como espaço de resistência: resistência contra as práticas do Governo Federal de desmonte das políticas públicas culturais no geral, e da sétima arte cinema em particular, mas também de resistência contra as dificuldades históricas para se fazer cinema no Brasil. Nesta década e meia, a Mostra se fortalece cada vez mais como espaço de democratização do acesso ao cinema nacional, ofertando com sua rica programação um panorama da produção cinematográfica brasileira.

A Mostra, que este anos celebra os 80 anos de nascimento do pai do Cinema Novo, Glauber Rocha, terá em sua abertura a cantora, compositora e cineasta Ava Rocha. Filha do cineasta, a artista irá performar ao lado do músico conquistense Filipe Massumi, na sala principal do Centro de Cultura Camillo de Jesus Lima. Ava Rocha irá apresentar, em um formato inédito e exclusivo, o show “Trança”, no qual ela canta temas atuais, como feminismo e identidade indígena.

Entusiasta, profundo conhecedor da sétima arte – ele mesmo cineasta, diretor do bastante elogiado longa “Contra o Veneno Peçonhento do Cão Danado” –, o presidente do Instituto Mandacaru – realizador da Mostra –, Marcelo Costa Lopes conversou com o Blog do Fábio Sena sobre o evento, sobre arte, cultura e sobre o significado de celebrar Glauber Rocha, um dos mais influentes cineastas do mundo, nascido aqui, na terra onde se realiza a Mostra.

“Na celebração dos oitenta anos de Glauber Rocha, falar de identidade, questionar nossa política, nossa cultura, nossos valores e inquietações a partir desse que é um dos expoentes maiores dessa forma crítica de ver questionar o Brasil tem tudo a ver com a essência da mostra. De certa forma, a mostra é um pedaço de Glauber cada vez que usa o cinema como ferramenta de transformação”, diz Marcelo Lopes.

Blog do Fábio Sena: Quem é Marcelo Lopes?

Marcelo Lopes: Eu sou um cara que não vive sem arte. Tenho que colocar um pouco de arte em tudo que eu faço porque se não nada do que eu fizer não vai ter sentido. Levo isso pra minha vida como educador, pra os projetos que desenvolvo, pra meus trabalhos em comunicação. Então, se for pra conceituar, dá pra dizer que sou uma espécie de sonhador pousado no cotidiano, dando conta das asas e dos sapatos.

Blog: O que significa fazer cinema no Brasil, mais especialmente no Nordeste?

Marcelo Lopes: Cultura no Brasil, como campo de trabalho, ainda é um problema. A gente vem de uma tradição muito longa no país que enxerga essa área como um perpétuo apadrinhamento, lugar de ações para mecenas, não como mercado, um mercado que no mundo gera tantos dividendos que só perde para o das armas. No cinema é a mesma coisa. A gente tem que brigar pra fazer um cinema que importe, que tem a nossa identidade brasileira (não a identidade dos outros) e isso, por si só, já é desafiador, ainda mais quando tudo que parece de fora é mais reverenciado do que o que temos aqui. Apesar disso, cinema é um lugar de gente valente. Mesmo estado longe do centro-sul do país, o que o Nordeste produz tem se destacado pela potência criativa de maneira muito representativa nos últimos anos. E isso é muito relevante.

Blog: Seu filme Contra o Veneno Peçonhento do Cão Danado foi muito bem aceito, mereceu críticas elogiosas em todos os locais onde foi exibido. Ainda assim, você considera que foi possível exibi-lo para tantas pessoas quantas você acha que deveriam tê-lo visto. Entre produção e distribuição, ainda é grande o fosso? Há cura pra esse mal?

Marcelo Lopes? Tem uma coisa que eu sempre falo: o mito fundador do cinema no mundo é a exibição da Chegada do Trem na Estação, dos irmãos Lumiére. O mito fundador do nosso cinema é uma primeira gravação feita na Baía da Guanabara. O mito fundador de um fenômeno diz muito sobre ele. Se para grande cinema, o cinema internacional, uma exibição marca esse ponto central, no nosso caso é uma gravação que nos rege. Isso demonstra como, de fato, conseguimos, no Brasil, uma dedicação para produções incríveis (mas, em sua grande maioria, desconhecidas) porque elas não necessariamente conseguem espaço pra serem exibidas. Ainda não conseguimos resolver isso. Produzimos, mas não damos conta ainda de exibir. No caso do meu filme, o gargalo é o mesmo. A ideia é que, em 2020, eu libere o filme por plataforma online pra quem quiser assistir, mas meu foco vai ser primeiro criar uma ação voltada pra trabalhar com o conteúdo que ele traz nas escolas.

Blog: A Mostra Cinema Conquista chega à sua décima quarta edição celebrando os 80 anos de Glauber Rocha. Nesses anos todos, quais os ganhos acumulados? É possível mensurar?

Marcelo Lopes: A Mostra é um espaço privilegiado de formação. Desde sempre, a preocupação em exibir, discutir e problematizar o audiovisual no país é um ponto central do evento. Tanto que toda a programação tem uma curadoria de filmes exclusivamente brasileiros, com especial atenção a obras do nordeste e da Bahia. Na celebração dos oitenta anos de Glauber Rocha, falar de identidade, questionar nossa política, nossa cultura, nossos valores e inquietações a partir desse que é um dos expoentes maiores dessa forma crítica de ver questionar o Brasil tem tudo a ver com a essência da mostra. De certa forma, a mostra é um pedaço de Glauber cada vez que usa o cinema como ferramenta de transformação.

Blog: Apesar de firmar-se como evento-referência do calendário nacional, louvado por cineastas reconhecidos dentro e fora do Brasil, a Mostra ainda enfrenta dificuldades quando o assunto é patrocínio. Qual a razão?

Marcelo Lopes: Sempre há o problema de recursos. Apesar de o Instituto Mandacaru – que nos últimos três anos atua como realizador da Mostra – receber recursos oriundos do Fundo de Cultura do Estado da Bahia, pela proposta aprovada no edital de eventos calendarizados, e sem os quais não seria possível viabilizar a proposta, o cenário de precariedade do financiamento da cultura é muito mais amplo e complexo. Mesmo com o apoio acrescido da prefeitura, muito do que poderia ser feito é enxugado ao máximo para torná-lo possível. Vivemos uma realidade hoje de marginalização da cultura, como há muito tempo não se via. O Brasil hoje sequer tem um ministério da pasta, sobre o cinema recai, pela atual política do país, um patrulhamento ideológico descabido e autoritário, e isso tem reflexos diretos no campo das viabilidades para captação de recursos. Ainda assim, a Mostra segue firme na teimosia e na resistência.

Blog: Nesta décima quarta edição, o que a Mostra traz de acréscimo a tudo quanto já produzido anteriormente?

Marcelo Lopes: Como sempre, a curadoria da Mostra sempre a exibição de filmes de longa e curta-metragem, misturando ainda na sua programação palestras, oficinas, conferências e homenagens. Este ano, além das atividades se concentrarem novamente o Centro de Cultura Camillo de Jesus Lima, manteremos as exibições na zona rural e numa das praças de Vitória da Conquista, o Cine-Tenda, desta vez na Urbis VI. Este um formato que já faz parte da estrutura geral do evento. O que muda de fato, é que a cada ano, esse olhar para o cinema se atualiza nas discussões que tem significado no tempo em que vivemos. Na edição deste ano, por exemplo, teremos o curso, ministrado pelo cineasta Geraldo Sarno e professor Auterives Maciel Jr., intitulado “Do movimento ao tempo: uma panorâmica do cinema brasileiro”, uma análise bastante profunda de um cinema experimental no Brasil e como ele se define na sua singularidade, inclusive nos tempos atuais.

Blog: De que maneira Glauber será celebrado na Mostra?

Marcelo Lopes: Glauber e sua visão de Brasil serão um fio condutor para a Mostra. Nos oitenta anos do cineasta seu legado radical sobre como o cinema é capaz de questionar e transformar o mundo, o país, terá lugar em diversos espaços da programação, desde a apresentação cantora e compositora Ava Rocha, filha de Glauber, na abertura do evento, até as discussões sobre sua obra, feita de forma direta ou transversal em cada uma das palestras e oficinas da mostra. Mais do que nunca, Glauber se faz presente como forma de resistir.

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