Termino a leitura do livro Sociedade do cansaço. Uma análise aguda do tempo que nos engendra. O autor, Byung-Chul Han, filósofo sul coreano, professor da Universidade de Berlim, parte do princípio de que estamos saindo da sociedade do controle e disciplinar, descrita por Foucault, para uma sociedade do desempenho. E qual a diferença? Naquela, há um claro desejo de disciplinar os corpos através das instituições (asilos, hospitais, fábricas, escolas, quartéis). A disciplina/controle é exógena, se estabelece de fora. Nesta, liberta-se das amarras externas e o controle se internaliza. Na sociedade da disciplina o imperativo categórico que a domina é o não-ter-o-direito, que se configura na obediência acima de tudo.
Na sociedade do controle o verbo modal é o poder ilimitado que se traduz na expressão yes, we can. Sou dono de minha própria vontade. O instrumento dessa passagem é o desejo de sermos livres e independentes de controles no mundo do trabalho. Sermos guiados pela própria vontade, fazer o próprio horário, estabelecer suas próprias metas e tempo. Sermos empreendedores e empresários de nós mesmos. Internaliza-se que somos sujeitos capazes de produzirmos o máximo possível. Desempenho é tudo. Desempenho no trabalho, na produção, na vida acadêmica, nas curtidas nas redes sociais, na aparência, na vida fitness e no desejo de aceitação.
A sociedade do desempenho é uma sociedade da hiperatividade. De excesso de estímulos, informações e impulsos. É a sociedade do horror ao tédio. De uma economia da atenção alterada. Nela, mata-se a contemplação, o não-ativo é inútil, perda de tempo. Por essa hiperatividade paga-se um preço: síndromes como ansiedade, depressão e burnout (esgotamento). Um cansaço que paralisa, desumaniza, embrutece. Perde-se a dimensão do contemplar a vida e geri-la com criatividade. "Por falta de repouso nossa civilização caminha para uma nova barbárie", diz Byung ao lembrar Nietzsche. E nesse processo até a vida psíquica se reestrutura em novas dimensões. A sociedade disciplinar é freudiana numa luta entre ego, id e superego (eu-ideal, instinto e controle). A sociedade do desempenho é da autocoação. O sujeito de desempenho, afirma o autor, é “incapaz de sair de si, estar lá fora, de confiar no outro, no mundo (...). Desgasta-se correndo numa roda de hamster que gira cada vez mais rápida ao redor de si mesma". O explorador é ao mesmo tempo o explorado.
Para quem acha que essa é uma discussão meramente acadêmica, exercício filosófico e fora da vida da maioria dos mortais, cito o interessantíssimo documentário que dá nome a esse texto. Estou me guardando para quando o carnaval chegar é o primeiro documentário do aclamado cineasta pernambucano Marcelo Gomes (conhecido por Cinema, Aspirinas e Urubus). O documentário é uma produção que surgiu a partir da visita do autor ao agreste de Pernambuco para reencontrar algumas memórias de infância.
Na viagem, o cineasta se depara com a cidade de Toritama. Considerada a capital do jeans, seus moradores, antes agricultores na maioria, agora produzem 20% de toda a produção de jeans do Brasil. Uma cidade pobre de quase 40.000 mil habitantes em que idosos, crianças, mulheres e a maioria esmagadora da população está envolvida em costurar, tingir, rasgar, pregar botões, bolsos e bainhas ao custo de centavos por peças produzidas. Uma verdadeira China, Bangladesh e Índia no interior do Brasil cuja a população se sente livre e satisfeita ao trabalhar no que chamam de facções (oficinas) montadas na própria casa e em família. A renda é gerada pelo desempenho, pela produção.
Assim, homens e mulheres trabalham, sem direitos trabalhistas, por 12, 14 e até 18 horas por dia. E a única pausa, interrupção para o estafante labor é o carnaval. Momento em que toda a cidade se mobiliza e se esforça, até mesmo vendendo o pouco que possuem, para curtir alguns dias de folia no litoral. Uma história que enche de alegria e inspira, ainda mais, qualquer reformador neoliberal que coloca a redução dos direitos trabalhistas como condição de sobrevivência do trabalho.
Por último, para ligarmos o que aponta Byung, em seu livro Sociedade do cansaço, com sua obsessão pelo desempenho, e para quem acha que o exemplo do documentário é ir longe demais, pego carona nos motoristas de Uber. Essa modalidade de serviço de transporte que empolga muita gente pela oferta mais barata dos que os tradicionais sistemas de transporte privado.
Essa modalidade está criando verdadeiros obcecados pelo desempenho e dependentes da produção que trabalham exaustivamente sob o signo da liberdade e do tão sonhado desejo de ser “patrão de si mesmo”, dono de seu próprio tempo. Quando, na verdade, cria-se o que o filósofo sul coreano chama de autocoação. Triste realidade quando o trabalhador passa a ser algoz de si mesmo.
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