Tuesday, August 07, 2018

berlin - uma crônica roqueira, underground e pobre de devana babu


por devana babu (tudo minúsculo mesmo)

– o nome da loja é por causa do disco?, perguntei.

atrás do balcão da berlin discos, o disco berlin figurava num pôster. lou reed fazia a clássica pose de bad boy gigolô, empunhando uma guitarra de boutique novinha, entre um índio bizarro e um sujeito insignificante com cigarro nos lábios.

fiquei felizão em ouvir que sim. porra, berlin é meu disco favorito do lou! ou talvez o único que eu goste. uma emoção estranha me invadiu. o nome da loja de discos mais histórica do histórico reduto da cultura marginal do centro do plano piloto era uma homenagem ao disco que eu amo. meus olhos cintilavam.


– são vinte e nove e noventa – disse o coroa, dono da loja.

eu mal podia acreditar que estivesse empunhando aqueles três discos. eles nasceram para mim, estavam me esperando, eu sei! e agora eles seriam meus, todos meus.

É-me um prazer inenarrável, sensorial e gratuito rapinar os discos, tateá-los, mirar as capas, ler os encartes, saborear os títulos e acumular informações. É um prazer onanístico, um ato individual e intransferível, cujo único benefício é causar prazer: folhear lâmina por lâmina, seção por seção, em toda a prateleira; e observar os atendentes esperançosas, mas impacientes, te olhando com cara de bunda. ou testar a paciência, só de pirraça, daquele sujeito apressado, metido a comprador de discos profissional, que folheia tudo rapidamente como quem diz: “conheço tudo! sou habilidoso e vou direto ao ponto! estou só procurando aquele disco da orquestra finlandesa de pifes bávaros”. quando vejo um desses pigarreando, não me aguento. a maldade aflora em mim com requintes de crueldade. faço questão de ler detalhadamente a ficha técnica dos discos, só pra irritar, de preferência da prateleira de discos que ninguém ouve mas compra pra se amostrar.

e, se você tiver sorte, o vampirão da berlin pode até tocar seu disco! eu nunca tive coragem de pedir mas a sorte me sorriu apenas uma vez.

meses atrás, voltando de uma gráfica, com zines na mão, passei na loja e folheei minunciosamente cada um dos discos da prateleira deste templo, como sempre faço. mas eu só folheio mesmo, nunca tenho grana pra comprar porra nenhuma, e esta é a terceira parte da diversão: deixar o povo da loja puto porque você passou horas lá folheando e não levou nada.

De repente deparo-me com aquelas duas magníficas pérolas: primeiro, o tender prey, do nick cave (meu coração vibra só de pronunciar o nome outra vez). depois, um pouco atrás, from her to eternity! luxúria! luxúria! gozo! ainda hoje, nesse exato momento, posso reviver a sensação.

que sorte da porra! que azar da porra! nem um tostão sequer! tampouco poderia roubá-los. não por escrúpulo, mas porque a loja toda é do tamanho das prateleiras e porque eu jamais ousaria roubar algo de uma loja vigiada por um funcionário vampiro (que tem um excelente gosto musical, aliás). confesso ainda que sofro de complexo de solidariedade underground. alguns podem chamar de empatia.

voltei para casa com o coração partido, cansado e a cabeça nos sonhos esquecidos naquelas prateleiras. nessa noite, ouvir música no youtube me parecia uma traição.

no pequeno mural da berlin, perto das camisetas, tem uma foto autografada do nick, acho até que é aqui no brasil. aqueles discos não iam durar nem um dia, provavelmente. assim que eu saísse algum maníaco cheirador cheio da grana iria limpar o acervo.

feliz engano! hoje, voltando outra vez da gráfica, zines na mão, passei na loja e me dediquei mais uma vez a meu passatempo favorito, mas sem qualquer esperança. emocionado, serendipitoso, com um nó na garganta, descubro que os bebês ainda estavam lá, intactos, inéditos, praticamente novos, e sem nenhum vestígio de carreirinha. E mais: ao lado deles estava nada menos que… berlin.

respiro fundo e tateio o bolso. meus últimos trinta mangos da miserável bolsa da unb, mal recebida e já gasta. não pensei duas vezes. quem precisa de dinheiro quando se tem discos?

***
epílogo

abro a porta do quarto, ansioso, dispo apressadamente os discos e desvirgino-os. eles pareciam me dizer: “é minha primeira vez, seja gentil”. fui gentil, mas sem delongas. desvirgino-os. Primeiro o tender, depois from her… e, por último, o do reed.

a agulha chia, espero a aura densa e pesada se harmonizar com meu muquifo e…

– que porra é essa?
uma guitarrinha da mais banal possível e a voz do lou desembestando como um rapper metido a literário criaram o anticlímax da minha decepção.

– porra! não é o berlin, é o new York!

publicado originalmente no www.escutaqueebom.com

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