Friday, August 05, 2016

RETRATOS, ESCRITOS...por Marco Antonio Jardim Melo

Na falta de uma aldeia, de uma observação de valor ou minuciosa apreciação do mundo, uma tarde.
Embaixo, uma paisagem de silêncio numa rua quase industrial.
Acima, pombos, alguma fama, uma varanda e até poesia lírica, atrás da fotografia.
Natália talvez não tenha notado, mas havia aquele arrebatamento pessoal - ou puramente sentimental - em seus olhos claros brilhando ao sol.
Olhar nos olhos dela é como um caminho para o mar.
Ouvir sua voz suave, quase insegura, sem rumo ainda certo, era como ouvir o tempo.
Que bom também é voltar a escrever em algum lugar que parte do mundo possa ver.
Um terraço de apartamento, dois gatos no meu colo, tecidos estampados cobrindo um canapé estofado e outras fotos, outras grafias.

Um universo não tão vasto assim, mas ia até onde a vista alcançaria.
E fui, envolto num lenço palestino, sem saber até quando desejaria voltar.
A tarde tem desses efeitos: uma tragada, uma arquiteta que desenha, escreve e declama, um caos interior que me desperta a atenção.
Ully talvez não tenha notado, mas, ali, no canto do sofá, sentada, observando o movimento circular de minhas mãos na tigela tibetana e no bastão, havia um pensamento seu movido pela esfera do mundo.
Era como se ela amasse a luz de uma terra distante, sua ligação com os pensamentos materializados no som ou um qualquer canal de ideias repetidas, destinadas.
A ideia de um sinal, um sinal, um sinal. Ou um nada.
Ah, o destino, diria ela, esse professor de cruel gargalhada.
Aterrissado no chão do azul do céu.
Talvez faltasse ali uma rede na sala vazia, mas tinha um espírito intelectual, nobre, diligente, quase transitado pelos reflexos de luz.
Afonso talvez não tenha notado, mas alguns dos seus gestos pareceriam contritos não fossem tão-somente efeitos de sua alma mineira.
Talvez não tenha percebido, mas ficou em seu rosto a marca certeira do beijo da filha.
Entre os dois, a tarde que atravessava o interior.
E a poesia no verso de uma prova de sol que caía na sala e amanhece na copa.
Depois disso, placebos com o que eu escrevia.
Falamos das conjunções, das formas geométricas, traços, dos livros sobre cores, do clube da esquina e outras receitas para entreter o vento que arrefecia.
Ao final, um sabor agradável, quase doce, natural.
Como se cada átomo das palavras estivesse perfeitamente combinado ali, na tarde confidencial.
Ao descer as escadas, nem sequer dei o paradeiro da recordação doída de que alguém havia, pela manhã, esquecido meu rosto.
Talvez eu mesmo não tenha notado que, ainda que estivesse ausente daquele entardecer, preferiria não determinar a razão.
Anoiteceu só nesta hora, neste tempo, tempo, tempo em meu coração.

No comments: